sábado, 21 de agosto de 2010

Dulces dominós... Dominus dons...




Montado em sonhos quixotes o poeta seguia em seu galope pela estrada observando as palavras descreverem mirabolantes parábolas nas folhas de um futuro em branco e incerto. Por instinto mantinha um trote q lhe permitisse perceber com razoável nitidez os sinais de sua natureza, mesmo q, por vezes se deixasse levar sem uma clara razão ou a mínima noção do q iria alcançar.

Na maioria das vezes vestia-se com cores maracatus de alegria, atravessando o dia de braços dados e adornados de sutil energia, em danças e gingados crescentes em ardente folia. Muitas vezes sentia a escuridão riscar sua pele com insolentes açoites de solidão. Então mergulhava em profundo silêncio, deixando seu pensamento solto solver o gosto amargo dos esgotos, enquanto su’alma, com a imaginária espada em punho escalava os muros frios da realidade, embrenhando-se numa luta inglória contra os ferozes e traiçoeiros dragões da inquietação.

Ainda q sentisse seu corpo coberto de manchas, não soltava as amarras q prendiam as sementes de uma esperança guardada em seu coração criança. Ainda q se sentisse mtas vezes sem rumo, seu coração vagabundo escalava montanhas, desafiava mundos à procura de um incerto amor onde pudesse se lançar e navegar em paz. Sabia q não poderia evitar a atravessia na corda bamba q equilibra o amor e a dor. Sempre sobrevivera as torrentes de inesperadas tempestades. Sempre soubera se posicionar diante dos incontroláveis remoinhos. Nunca se deixara levar pelas sincronizadas conclusões de uma platéia atenta aos bordões e chavões. Sanguessugas ávidos por sangue postados confortavelmente em disciplinados hábitos vulgares. Juízes de rabos atados. Meros observadores de olhares passivos e distantes.

Nada disso lhe causava espanto. A vida lhe ensinara a sobreviver na melodia de seu cântico. As agruras e as duras flechas da decepção já não conseguiam perfurar o escudo com q protegia a emoção de um dia estar diante dela, sua única, lúdica e desnuda dulcinéia.

No intervalo do tempo, sentado no palco pela primeira vez, ele pensou o qto ainda suportaria aquele intrigante monólogo. No espaço demarcado do tablado seu olhar percorria o movimento das peças em jogo. Um mar agitado e desconhecido insistia em molhar seus pés.

Batidas secas e firmes de pontiagudos saltos marcavam a entrada helênica da elegante fêmea na cena. Com o olhar fixo em um ponto imperceptível a tantos olhares surpresos com sua inesperada entrada, ela demarcava seu espaço de maneira imperiosa. Em cada passo q dava se livrava das palavras com a simplicidade de quem vivia o teor de tdo o q dizia. Com maestria despejava rastros milimetricamente calculados, fazendo pulsar com incomum intensidade os corpos expostos aos contornos firmes das carnes q se faziam verbos e saltavam de sua boca.

Como de hábito costumava olhar o horizonte além da platéia. Gostava da maneira como o mar molhava suas pernas qdo começava a sonhar com noites perfumadas, misturando o cheiro q ela própria exalava com o suor sargaço q lhe abraçava. Amálgama a percorrer sua alma por inteiro. Saudade era uma palavra q fazia bater sua emoção. Vontades eram palavras q lhe percorria as veias e despertava um desejo latente de voar. Queria bater asas mto além do q permitia seu ofício de atriz.

O olhar atento da platéia atravessava o seu vestido, devassando a silhueta mulher em agonia e imersa em sombras. Cada movimento mímico desenhava detalhes de sua vida encenada na clausurada de textos sem pudor. Uma sarça ardente q nunca chegara a emergir. Um sax dissonante conduzindo sua alma pelo vazio do nada, sem refletir a fome q sentia em viver.

- Tenho sede da noite q ainda não vivi, mas q molha minha boca na vontade de lhe beber. Sinto a fome dos loucos q se devoram. Dentro de mim a vontade me abre o buraco de um vazio e me lança num abismo q não sei se terá um fim. Meu corpo queima no fogo, mas não incendeia.

As inúmeras faces da atriz, até então ocultas atravessavam o palco às avessas, numa investida alucinada e despida contra a luz. Parecia desperta de seu próprio limbo. Saboreava o próprio vômito. E era tanto q havia dentro de si ainda por expelir. Nada daquilo lhe perturbava. Pela primeira vez sorria com os olhos de quem começava a enxergar na escuridão. Pela primeira vez não sentia receio em se expor diante de uma platéia cega e sem noção da verdade q falava. Nem da amplidão com q se entregava de peito aberto à sua interpretação.

Na sua boca o verbo mastigava a carne. Suas mãos macias e indecorosas deslizavam por entre as pernas acesas, num grito de total liberdade. Naquele momento sentia sua vida se transformar. Mto embora ainda não soubesse lidar com tudo aquilo q a envolvia, cada gesto incendiava a fornalha de suas íntimas e alucinadas fábulas.

Voar pássaro sobre tuas cordilheiras
Ecoar no mar este querer prazer
Dançar carícias. Esparramar delícias
Beber sussurros no pescoço a flutuar
Transitar minh’alma feminina no homem q sou
Rabiscar poesias sanhaçus olor feitor
Transpirar soluços. Cutucar impulsos
Festejar suspiros, saboreando viços e suor

As cortinas estavam abertas. O tempo se passava num ato contínuo sem intervalos. Fazia horas q se olhavam e se percorriam. Surpresa, a platéia se levantou sem saber se aplaudia ou esperavam pelo fim. Aquilo não era esperado. A poesia não fazia distinção de gênero. A poesia era simples e até mesmo sem nexo. Explícita por intuição.

A atriz solta em seu corpo. O poeta solto em seu dom. Dominus pascit me nihil mihi deerit. A poesia girava no tablado como se gestasse sua primeira encarnação. Uma cena minimalista de sentidos múltiplos e cores em profusão.

Já não semeavam saudades. Já não lutavam contra a correnteza dos moinhos. Batiam asas se sentindo passarinhos. Deram cambalhotas. Imitaram marmotas. Já não esperavam o princípio do verbo. Faziam versos sem se preocuparem em acordar o tempo ou concordar a rima.

Sem esperar elogios e nem os rotineiros aplausos, eles sumiram pela coxia com as mãos desgovernadas enfiadas entre suas coxas. Sem a menor cerimônia. Sem deixar rastros. A platéia sem nada entender e nem perceber q aquele era o último ato, se levantou calada. Dizem q até hj esperam seu retorno ao palco.

Enquanto isso, bem longe dali, um poeta continuava a galopar sonhos quixotes. Ao seu lado uma dulcinéia sem vestes, leve e feliz, por nunca mais precisar sua máscara de atriz.

No mesmo instante, ainda mais longe dali, Egberto Gismonti dedilhava suave no piano, Charlie Haden acordava o contrabaixo com as pontas dos dedos e Jan Garbarek percorria com seu sax a melodia, em Silence...