sábado, 27 de dezembro de 2014

A filha do desembargador...




3 da madrugada. Após três dias fustigantes encontrava-se a três passos das fronteiras de si mesmo.

Ribera de la Cruz era um cercado regido pelo silêncio. Ali não se falava abertamente. Somente qdo estavam entre seus botões aproveitavam e falavam aos borbotões, a ponto de criarem curiosos bordões.

Na província não era segredo pra ninguém. O q havia era respeito imposto, passado de pai pra filho, e um temor em macular a figura do velho desembargador

No terceiro dia descansava do almoço qdo avistou pela primeira vez a viu passar esvoaçante, causando alvoroço na praça.

Religiosamente, às quinze horas de todas as tardes, a filha do desembargador atravessava o pátio defronte a catedral; indo em direção ao café q havia no único cinema do lugar.

Vestido solto de corte cavado; cabelo amarrado e pescoço perfumado. Um tanto dislética, mto poética, cumprimentava a todos com um sorriso maroto entre os lábios. Para evitar desagravos dos olhares beatos em seu decote, trazia colado ao peito um livro com crônicas de Clarisse e outro sobre a vida de Beauvoir.

Quem a vira crescer revestida de boa dialética tapava os olhos ao ouvir histórias dela. Logo ela, a dileta personificação da candura, capaz de enxergar ternura em trama de 'puruca', revelara-se fonte abundante de malícias, protagonista de estimulantes aventuras.

Balzaquiana de estirpe burguesa. Embora impingisse valores rígidos em seu comportamento, em alguns momento deixava escapar, principalmente ao luar, suas tendências e preferências 'bachianas'. Não importava onde fosse: na vila, na cama forrada de grana ou na língua dançarina dos lobos.

Para catedráticos era um pecado. Para adolescentes apaixonados, uma punheta enfeitiçada.

Para o desavisado e recém-nomeado-namorado significava experimentar as turbulências de nuvens escuras de chuva pesada.

Aos amores, novos e antigos, recitava o mesmo verso. Aquele em q aprendera semear, ao folhear os livros na estante de seu pai.

Após flanar pelos intelectos, recolhidas as asas da Pannair, cruzava as pernas na poltrona do bem frequentado café.

A maneira como misturava lirismo e cinismo causava fortes estragos. Não raro transformava olhar impetuoso em desnorteado. Esse, coitado, passava o resto do dia a tatear o vácuo; no vazio perturbador dos desejos deixados a ermo, sem perspectivas de definição.

Feita as leituras distribuía pequenas amostras da pujante tríplice fronteira. Conduzindo pensamentos pelas beiras revelava a relva coberta por uma fina renda bordada à mão, em azul perdição.

Calculado os pontos do risco, definida a perfeita medida mais atrevida, dirigia o olhar para o bilheteiro. Este, tomado pela deferência, respeitosamente lhe abria as cortinas.

Com movimentos de cisne ela agradecia e adentrava, pisando em plumas, no escuro do cinema.

A partir daí era dela a mais bela e louca sessão da tarde...

Encerrada a sessão; liberados os espíritos; retocava o batom com o corpo coberto de sêmen e interjeições. 

Antes q a tela anunciasse o fim e as luzes fossem acesas, saia apressada sem olhar dos lados; condenando à loucura perpétua quem tivesse depositado os desejos no seu colo movediço de Medeia.

Sobre a cabeça nenhum avião. No rosto o gozo besuntado. No corpo o querer desregrado. No sangue o inquieto frescor. Na alma o gosto amargo do solo mátrio talhado em séculos de rejeição.

Três semanas depois, já às margens do rio Uruguai, sentindo o cheiro de suas águas não conteve a vontade de tê-la outra vez nas mãos.

Esperando a balsa atracar no porto, Almodóvar assistia a tudo. Bêbado como uma cachorra, balançou a cabeça e disse: - vuelve y habla con ella...










Puruca é uma espécie de peneira com q se separa o grão do café.

Clarisse Lispector. Escritora e jornalista 'brasileira' nascida na Ucrânia.

Simone de Beauvoir. Escritora, filósofa existencialista e feminista francesa.

Medeia, na mitologia grega, era filha do rei Eetes e, por algum tempo, esposa de Jasão. É uma das personagens mais terríveis e fascinantes da mitologia, por envolver sentimentos contraditórios e profundamente cruéis.

Rio Uruguai. Rio q serve de fronteira entre o Brasil e a Argentina. Nasce Rio Pelotas, na divisa entre o Rio Grande do Sul e Santa Catarina, e se torna Rio Uruguai depois de receber as águas do Rio Canoas. Em sua foz é Rio da Prata, no Uruguai.

Pedro Almodóvar é um ator e cineasta espanhol.

domingo, 21 de dezembro de 2014

Cachoeiras no tabuleiro...




Se o pecado morava no quarto ao lado, a ternura era vista no andar térreo.

Era como se pudesse existir uma enorme distância entre o céu e o inferno.

Era como experimentar o corpo no jardim do inesperado éden, no mesmo instante o calor de um oásis impregnado de desertos.

Afeito a contemplações o dia passava entre refeições. Subindo e descendo degraus o tempo passava num recital de orações. Nem ele sabia de nada.

Sabia q qdo se aproximava do corpo de lírio, o respirar aflito de fantasiar delitos sucumbia à realidade do toque de suas mãos.

Em caso de contratempo ensaiavam correr pelos ventos. Desconhecendo mapas adentravam as matas no mato dentro.

Atentos às ruas iam e vinham em avenidas escuras. Entretidos nas curvas misturavam-se no tabuleiro. Longe de olhares traiçoeiros.

Se algum farol denunciasse sinais de neblinas refaziam o percurso e afinavam o discurso.

Sem outro recurso tocavam-se em silencio, olhando o asfalto molhado de negro. No porta luvas desejos cravejados de segredos, mantidos em cada despedida, até o último beijo.

Quase sempre os domingos adormeciam deixando restos de pecado para a segunda. Cada qual com seu andar conduziam seu andor no quadrado de seus quartos.

No quarto ao lado via-se a ternura descer ao térreo para regar o jardim...










Situada no Parque Estadual da Serra do Intendente, a Cachoeira do Tabuleiro é considerada a cachoeira mais bonita do Brasil. Principal atração da pacata Conceição do Mato Dentro, cidade mineira distante 3h da capital Beagá.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Morena flor do cajueiro...



Saudade é vontade frondosa; fonte gostosa q se joga fronteiriça e goza na cara da gente.

Surge incontinente, assim de um repente, tocando o peito, deixando o coração zabumba.

Com os desejos desnorteados os olhos grudam no rebolado da bunda.

Saudade é lembrança com cheiro. Cabelos negros trançados no mar.

Emoção sacudida na foz do rio. Vazante de vaza barris. Mãos seguras no quadril só encontra refúgio no cangote suado.

Saudade. Desejo traiçoeiro desgraçado. Tentação q vem a galope anunciando florações em janeiros intensos, inteiros, ensolarados.

Remelexos castanhos floreados. Céu de fêmea risonha q sonha acordada. Colhida na boca, anéis estufados no pé da cajueiro.

Tem coisas q nem mesmo o tempo consegue dar jeito...


segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

O mezanino...




Andar pouco elevado, como manda o recato. Olhar substantivo, um tanto subjetivo.

Se viver fosse preciso, entre dois andares haveria o imprevisível pronto a lhe estender a mão.

No alto, espalhado entre janelas, retratos imprecisos da vida. Sem dar na vista folheava revistas deixadas no porão. Um tanto julieta ruía no balcão.

Vestida de uma melancolia engomada pelas mãos de fada da invisível mucama - sempre a lhe fazer companhia nas sessões de terapia - demonstrava plácida leveza ao se expressar.

Apoiado na prima consanguínea da etiqueta, irmã gêmea da filosofia, o olhar, a revelia da poesia, não imprimia a cadência nem a sinfonia adequada capaz de relaxar.

Por isso nunca se revelara. Nem antes nem no depois, qdo fez pose para a fotografia. Nem mesmo qdo sozinha degustava o ar como gostaria.

Sonhava com cheiros no lago. Folhagens meladas de barro grudadas no corpo. Alma e pernas estendidas redescobria-se presa às correntes mantidas em segredo.

Longe do olhar rendia-se de tal maneira aos desejos, q, mesmo o mais colorido dos filtros não saberia realçar.

Aos poucos o olhar maroto deixava de pedir socorro. Como sempre, como em tantas vezes loucas, resolvia-se ao voar.

No dia seguinte, um punhado de lembranças misturado às remelas encobria outra vez o olhar.

Sobre a mesa o vinho derramado.

No colchão o pensamento avoado, ainda a passear pelo mezanino...


sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Avenida Alberto Bins, número doce...



Feito o esboço desenhou palavras afiadas pelo pescoço.
Nele decifrou missivas. As lidas e as ainda não lidas.

Pela primeira vez não sintonizou a gaúcha.
Invés disso fez garranchos no muro sem ouvir lamentações.

De pálpebras fechadas quis perdurar o instante.
Disposta a decompor-se apalpou o q tinha às mãos.

Ao sentir o nervoso deu as costas à estátua de marfim.
Debruçada desmanchou-se como um doce pudim.

Assim ficou. E assim se foi a aninhar
o anelar e seus vizinhos nas pétalas da orquídea...







Alberto Bins foi o primeiro porto-alegrense a assumir a prefeitura da capital gaúcha. Hoje é nome importante avenida comercial no centro histórico de porto alegre.