domingo, 1 de junho de 2014

Lembranças do alegrete...



- Se soubesse q vinha tinha lavado a cueca...

Com esta frase poética o prosaico hedonista cumprimentou a rapariga violeteira q lhe estendera a flor. A outra segurava as ramas de sua terceira idade.

Em seu engomado traje sujo de gala engoliu a seco metade do sorriso. Ainda assim exibiu o camafeu e a pose ensaiada ao longo do tempo.

Depois de aceita a reverência, feita e aceita tantas outras vezes, sem q percebesse passou em revista as rugas e a pele flácida escondida sob o cachecol.

Saudades da aurora em q sonhara ser uma mulher de verdade...

Se soubesse talvez não perdesse tanto tempo atirando pedras na poesia de Mario Lago. Tempo em q os pensamentos corriam atrás dos ventos. Tempos infantis de malícia e perícia em chupar sorvete sem derramar uma única gota no chão.

Agora, por mais q tentasse, não conseguia apagar os rastros deixados nas calçadas da nova república. Não entendia de mobilidade, mas caminhava livre, sem medo de assalto, sem olhar para trás.

O tempo nunca foi como o vento. Depois de certo tempo demora a passar...

Apesar da insistência não conseguia remodelar o passado. Para compensar afiava o linguajar enigmático, alinhavando madrugadas com um sintomático ranger de dentes.

Todos os dias o passarinho preso na gaiola lhe acorda cantando o esperado blues. E assim o faz repetidas vezes durante o dia. Assim mantém seu universo azul...

No precipício dos ventos, entre juras de amor ao bem amado, lamenta o tempo não andar para trás. Tal qual caranguejo-uça comprado na feira do peixe, na véspera do feriado, eternamente prolongado, em q lavara mais uma vez sua cueca.

No outro lado do oceano ainda se ouve sons de um baile de primavera. Tantas léguas a nos separar...

Foi bonita a festa. Bah! No meio de tanto amar, pena existir tanto mar...









Alegrete. Pequeno canteiro para plantas ou flores.

Mário Lago. Poeta, compositor e ator brasileiro. Autor dos sambas "Ai, que saudades da Amélia" e "Atire a primeira pedra". Este em parceria com Ataulfo Alves.

Caranguejo-uçá. Caranguejo de carapaça e patas cinza avermelhadas.

No final uma deliciosa interferência de “Tanto mar”, de chico Buarque, em sua versão original.

Montagem sobre a pintura de José Vital Malhoa, pintor e desenhista português.